por Victória Gadelha para o GFI Brasil
No final de 2020, uma pesquisa publicada na revista Science mostrou que, mesmo se todas as emissões de combustíveis fósseis fossem imediatamente zeradas, seria impossível cumprir a meta estabelecida pelo Acordo de Paris (de limitar o aumento da temperatura terrestre a 1,5°C ou até 2°C acima dos níveis pré-industriais) por conta das emissões geradas pelo sistema alimentar global sozinho.
Um artigo publicado na Nature Food indicou que se as 54 nações mais ricas do planeta (17% da população mundial) adotassem a dieta EAT-Lancet, que é baseada majoritariamente em vegetais, elas poderiam reduzir suas emissões de CO2 em dois terços ou 61%.
Em fevereiro de 2022, um novo estudo publicado pela PLOS Climate mostra que se a produção global de carne e laticínios for gradualmente reduzida até zerar durante os próximos 15 anos, será o mesmo que “cancelar” as emissões de gases de efeito estufa (GEE) geradas por todos os outros setores econômicos por 30 a 50 anos. Ou seja: uma transição progressiva para um sistema alimentar global baseado em vegetais tem a capacidade de, em pouco mais de uma década, zerar a quantidade de GEE que todas as indústrias, transportes e o setor energético, combinados, levariam até mais de meio século para emitir na atmosfera.
O sistema alimentar vigente é responsável por 34% de todas as emissões de GEE e a produção de proteína animal, sozinha, gera mais da metade (ou 15%) desse valor. Essas emissões vêm de várias fontes, mas principalmente da fermentação entérica (processo digestivo que ocorre em animais ruminantes) e do esterco dos ruminantes (que juntos, também são responsáveis por 32% das emissões de metano no mundo), da queima de combustíveis fósseis na cadeia de produção e abastecimento dos alimentos, e do desmatamento intensivo e extensivo (para abrir pastagens e para plantar os grãos que viram ração para os animais de abate).
Mais de 70% de todas as terras agrícolas do mundo são focadas na produção de alimentos para animais e 30% da superfície terrestre são ocupadas pela pecuária. Isso significa que um terço de toda a terra existente no planeta é usada para abrigar e/ou alimentar animais que, dentro de muito pouco tempo – e em escala industrial – são abatidos e chegam até nós como hambúrguer, bife, filé, coxa, linguiça e inúmeros outros tipos de formatos e cortes. Segundo o estudo, para sustentar um sistema alimentar baseado em vegetais, seria necessário usar apenas 7% das terras do nosso planeta.
Quando se trata da contribuição da pecuária para o aquecimento global, a maioria das análises tende a olhar diretamente para as emissões do setor e deixam de lado a questão do uso da terra, que é extremamente relevante. Isso porque, ao interromper a prática da pecuária e restaurar ou “renaturalizar” (rewild, em inglês) essas terras, todo o carbono que seria emitido passa a ser capturado e armazenado.
O estudo publicado no início deste mês na PLOS Climate é uma colaboração entre o professor de biologia molecular e celular da Universidade da Califórnia, Michael Eisen, e o professor de bioquímica da Universidade de Stanford e CEO da Impossible Foods Inc, Patrick Brown. Importante mencionar que a Impossible Foods é uma das grandes fabricantes de produtos vegetais substitutos de carne dos Estados Unidos, avaliada em US$4 bilhões em 2020. Os autores expõem esse conflito de interesse no início do artigo mas garantem que a ciência é sólida.
Mas a diminuição gradual na produção de carnes e laticínios é viável?
Para Brown, as mudanças necessárias devem ser orientadas pelo mercado, que segundo ele, é a instituição de ação mais rápida na Terra. “Esse movimento será impulsionado pela escolha do consumidor do lado da demanda. Se existem produtos que fazem um trabalho melhor em entregar o que eles desejam, nada pode impedir isso”.
Comprovando o que Brown diz, de acordo com o relatório da Research and Markets, o mercado global de carne e laticínios à base de plantas pode alcançar US$ 68,7 bilhões até 2025, com um crescimento anual (CAGR) de 17,42%. O mercado de proteína animal também deve crescer, mas numa taxa menor do que 4% ao ano. AT Kearney, empresa líder em consultoria de gestão, projeta que as carnes à base de plantas representarão 10% do mercado de carnes já em 2025.
Os desafios já começam a aparecer. Um novo relatório do The Good Food Institute aponta que o setor de alternativas vegetais pode ter problemas para suprir a demanda projetada para 2030. A pesquisa identificou entraves sobre a disponibilidade de volume para o fornecimento global de ingredientes essenciais para a indústria (como óleos, gorduras e proteínas). O estudo concluiu ainda a necessidade de investimento em infraestrutura, modernização das instalações de processamento existentes e colaboração entre os stakeholders do setor para que esse mercado prospere.
O CEO da Impossible Foods admite no estudo que uma transição completa para um sistema alimentar à base de plantas enfrentará, sim, vários obstáculos e desafios porque carne, laticínios e ovos são um componente importante da dieta humana e a criação de gado é parte integrante das economias rurais em todo o planeta. Quase 2 bilhões de pessoas, a maioria no Sul Global, criam seus próprios animais para alimentação e renda – embora comam muito menos carne do que os consumidores de nações ricas. Essas pequenas fazendas produzem cerca de 80% dos alimentos consumidos na Ásia e na África Subsaariana, mas estas regiões apresentam os menores índices de consumo per capita por ano de carne do globo (Ásia: 26.6kg e África (toda): 13.0kg).
Por esses motivos, Brown e Eisel apontam o Ocidente como o principal responsável pelas altas emissões do setor de alimentos e, assim como o estudo da Nature Food, concluem que o foco da transição alimentar deve estar nesses países que, representando 68% do PIB global, é onde a mudança causaria o maior impacto positivo para o clima. Contudo, é importante dividir a responsabilidade dessa transição alimentar globalmente. Essa é uma mudança que, para ser efetiva, precisa acontecer do lado de quem produz e de que consome.
Mas, por mais que os consumidores estejam demonstrando entusiasmo com os alimentos feitos de plantas, que replicam cada vez melhor sabor, textura e nutrição das versões convencionais e com preços cada vez mais competitivos, será que basta contar com a tomada de consciência do consumidor? As abordagens orientadas para o mercado podem fazer muito, mas serão suficientes para garantir o cumprimento de metas climáticas?
É inevitável pensar que os governos precisarão agir e elaborar, por exemplo, políticas para ajustar a pecuária a um modelo de produção mais sustentável. Isso foi feito – de forma intensiva – com o setor de energia e de transportes nos últimos anos. E enquanto outras tecnologias “amigas do clima” (como baterias e energias renováveis) já são discutidas regularmente em fóruns globais, como no Clean Energy Ministerial (CEM), onde as principais economias do mundo, em parceria única, trabalham em conjunto para acelerar a transição global de energia limpa, isso parece ainda ser um desafio para o setor de alimentos.
Uma das explicações pode estar no fato de que o potencial da contribuição das proteínas alternativas para cumprir as metas do Acordo de Paris tenha permanecido incompreendido até pouco tempo mas, com toda a ciência revelada nos estudos recentes, esse potencial não pode mais ser subestimado. Há muito a ser feito em nível internacional e, de acordo com um relatório do GFI com o Climate Advisers, as prioridades dos líderes políticos deveriam ser financiar a ciência de acesso aberto, incentivar a Pesquisa e o Desenvolvimento (P&D) do setor privado e apoiar a infraestrutura para fabricação de carnes cultivadas e feitas de plantas.
Enquanto isso não acontece, o mercado tem investido em soluções de curto prazo para incentivar a alimentação à base de plantas. São incontáveis os grandes e pequenos varejos, além de restaurantes e comércios locais, que têm colocado produtos vegetais em suas lojas ao redor do mundo. São inúmeras as empresas que estão desenvolvendo produtos híbridos e são enormes os avanços pelos quais o setor de carne cultivada tem passado recentemente.
As gigantes do fast food e do varejo também não estão ficando para trás – porque já entenderam que esses produtos vendem. O Panera Bread pretende tornar 50% do seu cardápio plant-based até 2025. O mesmo vale para o Burger King do Reino Unido, que até 2030 vai ter metade do menu com produtos feitos de planta para reduzir em 41% as suas emissões de GEE. No final de 2021, a rede Burger King também abriu sua primeira loja 100% vegetal em Madri. No Brasil, a rede conta com um sanduíche feito de plantas em seu menu. O McPlant, hambúrguer à base de plantas do McDonald’s, já é vendido em 600 estabelecimentos. Já a Tesco, uma gigante do varejo europeu, está no processo de aumentar suas vendas de alimentos à base de plantas (como hambúrgueres, salsichas, quiches, tortas e comidas prontas) em 300% até 2025 para acompanhar as medidas que desenvolveu em parceria com a ONG WWF. No início deste ano, a KFC lançou o “frango frito vegetal” em todos os pontos do Estados Unidos – depois do teste feito em Atlanta, em 2019, ter esgotado todo o produto em 5 horas. Ainda no Brasil, a rede Bob’s também conta com um lanche feito à base de plantas mimetizando o sabor de carne e frango.
Todas essas ações mercadológicas são importantíssimas para impulsionar uma transição alimentar porque tempo é um luxo que não temos de sobra. Para Brown, “a rapidez é tão importante quanto a magnitude. Todos os dias que não estamos fazendo algo a respeito, estamos avançando mais no caminho para danos irreversíveis”.
E a questão da pressa toca em outro ponto extremamente importante: o respeito aos animais. Mais de 70 bilhões de animais terrestres são consumidos todos os anos e os consumidores estão cada vez mais atentos e preocupados com a maneira que isso está sendo feito. A Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou no começo de março de 2022, durante assembleia em Nairóbi, no Quênia, uma resolução que inclui o bem-estar animal como política essencial no Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). A proposta foi aprovada pelos 193 países-membros. Antes da assembleia, um grupo de 27 organizações, que juntas representam mais de 1 milhão de membros, enviaram uma carta ao Ministério do Meio Ambiente solicitando que o país votasse a favor da resolução. O The Good Food Institute Brasil foi um dos signatários da carta.
A carta solicitou que “os Estados-membros protejam a vida selvagem e outros animais não-humanos, considerando o crescente consenso de que o bem-estar animal e a proteção dos ecossistemas estão intrinsecamente relacionados com alguns dos mais significativos desafios enfrentados pela comunidade global atualmente – incluindo a redução do risco de novas e emergentes infecções por doenças zoonóticas, a mitigação das mudanças climáticas e de outras ameaças ambientais – e assegurando sistemas alimentares seguros e sustentáveis”.
O texto ainda menciona que o bem-estar animal é uma importante preocupação para os cidadãos do Brasil e ao redor do mundo. De acordo com uma pesquisa de setembro de 2021 do instituto Datafolha, 88% dos brasileiros se importam em maior ou menor grau com o sofrimento dos animais nas fazendas, o que representa 9 em cada 10 brasileiros acima de 16 anos, ou aproximadamente 148 milhões de pessoas. Além disso, também foi apontado que 84% dos consumidores comprariam em outro lugar caso soubessem que o estabelecimento vende produtos de fazendas originados de práticas cruéis. Em 2020, 50% dos brasileiros já haviam reduzido o consumo de carne, segundo pesquisa do GFI Brasil com o IBOPE.
Seja pela compaixão, pela empatia, pela consciência ambiental, pela preocupação social, pelo sabor, pela saúde ou por todas as alternativas anteriores, o que importa é que mais e mais pessoas estão mudando suas dietas e descobrindo que essa transição pode ser, além de necessária, incrível e deliciosa, ao mesmo tempo em que começam a perceber que o garfo é uma importante ferramenta política e que os alimentos que botamos no prato são um voto pelo mundo que queremos.