Fomentado pelo The Good Food Institute Brasil, Programa Biomas tem início com estudos de sete espécies nativas que podem substituir produtos de origem animal
A diversidade dos Biomas brasileiros pode colocar o país no centro da produção sustentável de matérias-primas do setor de proteínas alternativas. Com o crescimento do mercado interno de produtos feitos de plantas, 14 pesquisadores iniciam neste ano estudos sobre o uso de espécies nativas que podem ser base para análogos de produtos de origem animal. A expectativa é que espécies da Amazônia e do Cerrado – Babaçu, Castanha do Brasil, Cupuaçu, Guaraná, Baru, Macaúba e Pequi – sejam fonte de proteínas, pigmentos e fibras que integrem outras matrizes já usadas na indústria.
As pesquisas ocorrem no âmbito do Programa Biomas, criado pelo The Good Food Institute Brasil (GFI Brasil). As espécies foram selecionadas a partir de seu potencial econômico e técnico. Mais do que apenas encontrar alternativas às fontes protéicas, o programa selecionou investigações que pensam todo o ciclo econômico da produção do ingrediente, passando pelo uso de resíduos normalmente descartados, aplicação de tecnologias limpas, e fomento às comunidades locais.
Nesta edição do programa, mais de 80 propostas de pesquisa foram recebidas de cerca de 34 instituições de 14 estados brasileiros. O número mostra o avanço da pesquisa brasileira na área. Desses, o GFI Brasil selecionou 14 pesquisas. Os resultados das investigações que duram um ano serão divulgados abertamente a fim de tornar possível a aplicação e escalonamento das tecnologias desenvolvidas.
As pesquisas contribuem para consolidar a tendência de consumo de proteínas alternativas à carne, peixes e frutos do mar, leite e laticínios e ovos no Brasil, cuja demanda cresce a cada ano. O objetivo é encontrar o potencial real de aplicação desses ingredientes na indústria, desenvolvendo o mercado nacional, agregando valor às espécies nativas e promovendo o uso sustentável dos recursos naturais – caminho que leva à conservação da floresta.
Além disso, os pesquisadores buscarão identificar as características de sabor, textura, experiência de consumo, custo e nutrição de seus produtos, com foco em criar possibilidades reais de uso e consumo. “Nada melhor para a valorização do produto do que colocá-los no nosso prato e transformá-los em produtos do nosso dia a dia. Que o brasileiro possa se apropriar da riqueza que temos, que poucos têm acesso”, defende a gerente de Ciência e Tecnologia do GFI Brasil, Cristiana Ambiel.
Segundo estudo do GFI Brasil, 84% das empresas querem mais ingredientes nacionais. Na prática, os resultados podem apresentar alternativas às matrizes importadas para produtos à base de plantas, como a ervilha, que assim como a soja, domina a produção plant-based no Brasil. No cerrado, por exemplo, se estuda a possibilidade de produção de um hambúrguer totalmente feito com base no Baru. Na Amazônia, a castanha do Brasil pode ser uma fonte de proteína com maior diversidade de aminoácidos que os concorrentes estrangeiros.
“A gente vê o quanto o Brasil pode ser referência em proteínas alternativas para o mundo. Lançando tendências de proteínas. Temos como desenvolver alternativas nacionais, que sejam mais competitivas, levar isso para fora do país e servir como modelo e referência no mercado”, completa a especialista em ciência e tecnologia do GFI Brasil, Luciana Fontinelle.
Cristiana Ambiel também destaca que uma diversidade maior de ingredientes pode equilibrar a sustentabilidade de produtos plant-based. “O GFI já tem esse propósito da sustentabilidade, tanto é que fomenta produtos vegetais por serem mais sustentáveis que a produção animal. Mas conseguimos uma sustentabilidade ainda maior quando olhamos para a obtenção de ingredientes da nossa biodiversidade, em especial, quando visamos o aproveitamento completo das espécies nativas agregando valor às partes que são subaproveitadas como cascas, sementes e resíduos de processo.”
No contexto brasileiro, desenvolver o setor de proteínas alternativas significa gerar mais empregos com a diversificação da matriz econômica. É também um passo em direção a processos economicamente viáveis de produtos protéicos alternativos inovadores, que podem ser compartilhados com os atuais processos de produção de proteína animal para superar o desafio de alimentar de forma sustentável 10 bilhões de pessoas em 2050.
Fabiana Queiroz, pesquisadora da Universidade Federal de Lavras, uma das contempladas pelo edital, ressalta que o Programa é fundamental para o país e que também leva à preservação dos biomas. “A preservação desses frutos depende que a gente tenha a tecnologia de processamento para que seja interessante continuar a produção deles e impedir o desmatamento”, lembra.
Em qualquer cenário, é consenso entre os pesquisadores que as pesquisas devem deixar um legado de viabilidade ambiental, técnica, econômica e social para cada ingrediente, produto e processo desenvolvido.
Conheça algumas das pesquisas aprovadas:
PEQUI
Fabiana Queiroz, Universidade Federal de Lavras – MG
Tema da pesquisa: Obtenção de ingredientes a partir da extração integral da polpa, amêndoa e casca do Pequi para aplicação em produtos plant-based.
Apesar de estar presente em muitos estados do Brasil, o pequi, fruto chamado de “ouro do cerrado”, pode passar despercebido e não ter suas potencialidades aproveitadas se não for resgatado na pesquisa. É o que lembra a pesquisadora Fabiana Queiroz, professora do departamento de ciência de alimentos da Universidade Federal de Lavras, que propõe extrair diferentes compostos do pequi e usá-los na produção de um hambúrguer vegetal.
Considerado carro-chefe do bioma, o pequi é rico nutricionalmente: a casca é fonte de fibras e a polpa é rica em carotenóides, com porcentagem grande de carboidratos. Na amêndoa, a abundância de óleo é acompanhada de um complexo protéico, cuja farinha desengordurada pode ser usada na produção de produtos vegetais.
Essas propriedades tecnológicas serão estudadas pela pesquisadora e avaliadas para a fabricação de produtos alimentícios. “O pequi já é explorado por cooperativas, em termos de conservas e farinhas. Estamos entrando mais na possibilidade de processamento em grande escala”, explica Fabiana. Um dos focos da equipe é também contribuir com uma produção limpa, de aproveitamento integral do fruto e capaz de atingir escala sem afetar o meio ambiente.
“Essa exploração ao máximo de todo o potencial do fruto de uma maneira ambientalmente correta é o diferencial”, afirma Fabiana. “Não é extrair por extrair. É aproveitar ao máximo o produto. É um projeto que tem aplicação muito direta. A ideia é levar para a mesa de todos, em grande escala.”. O desafio, diz Fabiana, será contornar o cheiro e sabor do pequi, forte e exótico.
CUPUAÇU E GUARANÁ
Luiza Helena Meller da Silva, Universidade Federal do Pará
Tema da pesquisa: Desenvolvimento de ingredientes a partir dos resíduos do processamento do cupuaçu e do guaraná para aplicação em produtos plant-based.
Parente próximo do cacau, o cupuaçu é uma potência energética – sua árvore produz até 16 kg de frutos. Já o guaraná é um fruto que ganhou importância cultural ao longo do tempo em diversas regiões do país. Ambos encontrados na região amazônica, já são conhecidos na culinária, mas seu consumo gera um desafio: a quantidade de resíduos que “sobram” e são descartados.
Gerar valor agregado e diminuir a produção dessas sobras se tornou a prioridade de Luiza Meller da Silva, professora titular da Universidade Federal do Pará, que coordenará estudo sobre os frutos com objetivo de produzir análogos cárneos.
“Quando vimos um edital que trabalhava biodiversidade aliado ao desenvolvimento de produtos baseados em plantas, a gente pensou em usar algum tipo de resíduo que pudesse ter essa função de ser utilizada para desenvolver algum alimento que pudesse estar presente no mercado”, conta.
No caso do cupuaçu, a equipe de Luiza optou por trabalhar com a casca, que tem aplicações menos nobres – a polpa do fruto já é bastante conhecida e explorada comercialmente. Já o xarope de guaraná, usado em diversos alimentos, também gera um resíduo que será aproveitado. Uma das buscas é capacitar as fibras desses produtos para uso em produtos vegetais.
O estudo vai usar tecnologias que possam ser aplicadas em pequenas comunidades, sem a necessidade de técnicas sofisticadas ou processos agressivos. “O projeto visa o repasse não só do produto, mas do treinamento para que as pessoas também tenham esse conhecimento básico”, afirma. Na proposta exploratória, a equipe buscará agregados menos “óbvios” na indústria. No caso da matriz do produto final, é possível o uso da jaca, por exemplo, no lugar do grão de bico. “A ideia é fechar o ciclo e que as empresas que produzem tenham essa alternativa, ou de desenvolver na própria indústria ou de repassar o resíduo”, conclui a pesquisadora.
CASTANHA-DO-BRASIL
Raul Nunes de Carvalho Júnior, Universidade Federal do Pará
Tema da pesquisa: Estudo e Aplicação da Extração Supercrítica da Castanha-do-Brasil em Formulações Proteicas de Hambúrgueres e Nuggets Vegetais.
Encontrada na região amazônica, a castanha do Brasil tem motivos para ser considerada um tesouro nacional. Além da versatilidade da semente do fruto, o produto amazônico é essencial para a manutenção da renda de comunidades extrativistas e é tomada como peça-chave para a manutenção da biodiversidade da região.
Da castanha, o pesquisador da UFPA pretende obter diversos produtos como óleo e farinha desengordurada com perfil de ácidos graxos mais insaturado e elevada atividade antioxidante; extrato aquoso da farinha desengordurada com maior teor de carboidratos, de compostos bioativos como polifenóis e atividade antioxidante; e concentrado fibroso-proteico em pó da castanha-do-Brasil. Ao final da pesquisa, espera-se elaborar um hambúrguer e um nugget vegetais com os ingredientes obtidos nos processos de extração supercrítica da castanha-do-Brasil.
Um dos principais motivos que levou projeto a ser selecionado foi a aplicação da tecnologia supercrítica, utilizando o dióxido de carbono (CO2) como solvente para obtenção dos ingredientes. Esta tecnologia é reconhecida como uma técnica 100 % verde e sustentável, se encontrando em destaque no cenário atual da bioeconomia. Além disso, o projeto beneficiará as cooperativas extrativistas locais por meio de visitas técnicas e treinamentos para o beneficiamento da castanha-do-Brasil.
MACAÚBA
Acácio Antonio Ferreira Zielinski, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Tema da pesquisa: Obtenção de ingredientes a partir de subprodutos da extração do óleo da Macaúba para aplicação em produtos plant-based.
A macaúba é uma palmeira com intensa distribuição geográfica no Brasil, mas que tem maior concentração no Cerrado. Seu fruto tem importância na indústria por ser uma base promissora na fabricação de biocombustíveis. Assim como outros frutos da região, porém, a extração de seus subprodutos peca na produção e descarte de resíduos. “Eu estou vindo da perspectiva do aproveitamento completo da matéria-prima”, diz Acácio Zielinski do departamento de Engenharia Química e Engenharia de Alimentos da Universidade Federal de Santa Catarina.
“O caso da macaúba nós sabemos que, desse resíduo, uma fração vai ser proteína, a segunda fração vai ser polissacarídeo. Uma fração vai ser gordura, outra fenólico e outra carotenóide. E a gente vai fracionando”, explica o pesquisador, remetendo ao processo de biorrefinaria, usado para “desmontar” o fruto em subprodutos.
O projeto usará um processo hidrotérmico, tendo a água como solvente, para obtenção de ingredientes subutilizados da macaúba. Entre os destacados pela pesquisa, estão compostos bioativos, polissacarídeos, proteína e o pigmento amarelo, todos com potencial de fomentar a produção de um análogo ao empanado de frango.
A macaúba foi resgatada na pesquisa em especial pelo seu potencial de uso e cultivo por meio de pequenos produtores. “Nós estamos acostumados a uma economia linear, que vem o produto, usamos e jogamos fora”, afirma Acácio. A pesquisa pretende inverter esse processo, focando em uma economia circular, com redução do descarte.
BABAÇU
Nedio Jair Wurlitzer, Embrapa Fortaleza (CE)
Tema da pesquisa: Obtenção de ingrediente rico em fibras a partir de resíduo do babaçu para aplicação em produtos plant-based
Original da região amazônica, o coco babaçu compete em importância ao bioma com a castanha-do-Brasil, dada a sua relevância para as comunidades extrativistas locais. A extração de sua amêndoa é feita de forma bastante artesanal, e impulsiona uma atividade econômica fundamental para a manutenção de renda e conservação da floresta. Agora, o estudo liderado pela Embrapa quer aproveitar os resíduos do babaçu, normalmente subutilizados, como forma de dar sustentabilidade ao sistema e condição de vida aos pequenos produtores.
A experiência da unidade de Fortaleza da Embrapa com o babaçu já vinha de iniciativas de produção de análogos do leite e queijo. Observando os primeiros resultados deste estudo, os pesquisadores perceberam condições positivas de trabalho com o resíduo da extração do óleo da amêndoa de babaçu. A expectativa é que ele possa ser usado na produção de um ingrediente rico em fibras para compor análogos cárneos.
Além da amêndoa, a casca pode ser usada para obtenção de carvão e farinha. “São aplicações diversas que o pessoal de comunidades espalhadas na amazônia já utilizam”, aponta Nedio. “Não é uma produção concentrada, é uma produção bastante espalhada, com muito extrativismo”.
O resíduo compõe cerca de 40% da amêndoa, explica Nedio. O objetivo, então, é recuperá-lo para obter um ingrediente fibroso. O projeto também quer identificar as condições de armazenamento do produto, aferir a digestibilidade e o comportamento do material.
BARU
Mariana Egea, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiano (IFGoiano)
Tema da pesquisa: Obtenção de ingredientes a partir de resíduos do baru para aplicação em produtos plant-based
Presente no Cerrado, o baru é uma oleaginosa que, apesar de pouco conhecida em comparação à castanha-do-Brasil, está ameaçada dada a extração predatória de sua madeira. No escopo do Programa Biomas, a ideia da pesquisadora Mariana Egea, do IFGoiano, é aproveitar várias partes da cadeia de processamento do fruto, inclusive como forma de manter a floresta em pé.
Segundo a pesquisadora, é comum o consumo da amêndoa do baru, que corresponde a apenas 5% de todo o fruto. Quase 95% da matéria-prima é destinada à alimentação animal e adubação. “A ideia é aproveitar esses outros subprodutos”, diz Mariana. Por ser sazonal, o aproveitamento dos resíduos pode, por exemplo, contribuir para que produtores tenham renda por mais tempo durante o ano e se sintam conscientes de trabalhar pelo bioma, explica a pesquisadora.
O projeto quer constituir um hambúrguer aproveitando todas as propriedades do baru. Os elementos do fruto são extraídos e depois reincorporados em uma técnica de produção do hambúrguer que valoriza, por exemplo, a obtenção da textura ideal. Um dos resíduos que envolve a amêndoa pode ser fermentado para a produção de um fungo, base de um pigmento vermelho. A amêndoa, além do potencial lipídico, pode contribuir com a obtenção de proteínas e fibras. “O que a gente faz é a separação dos resíduos, uma modificação de forma biológica e uma reincorporação”, explica a pesquisadora.
Ana Paula Rebellato, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Tema da pesquisa: Obtenção de ingrediente extrusado com elevado teor proteico e rico em fibras a partir do subproduto oriundo da extração do óleo da amêndoa do Baru para aplicação em produto plant-based.
O alto índice de proteínas e fibras do baru chamou a atenção da pesquisadora Ana Rebellato, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No estudo de sua equipe, o diferencial será o uso da técnica de extrusão – processo mecânico, considerado limpo, que usa energia térmica. “A ideia é chegar em um produto extrusado, com teor de proteína elevado, que também tenha fibras”, diz a pesquisadora. O grupo pretende fazer testes com diversas misturas para avaliar as diferentes proporções de proteína e misturar a soja com o resíduo do baru.
Esse resíduo é obtido a partir do óleo do baru. Se aproveitado, agrega valor ao produto e contribui com a renda de pequenos produtores. Como resultado, se espera uma proteína texturizada que pode ser usada para elaborar um hambúrguer, que terá suas qualidades tecnológicas, microbiológicas e sensoriais avaliadas.
Para conhecer todas as pesquisas aprovadas acesse a lista completa aqui.