É o começo de 2016 e eu sou um candidato a Ph.D na UCLA investigando como transformar células-tronco de seres humanos em músculo esquelético e tecidos neuronais para estudar doenças neuromusculares como ALS. Foi aqui que eu li pela primeira vez sobre Memphis Meats (que agora é UPSIDE Foods), a primeira empresa a completar uma rodada de investimento para cultivar carne a partir de células tronco de animais.
“Interessante”, pensei comigo mesmo, “mas isso não vai acontecer tão cedo. É muito caro.”
Eu sabia do que eu estava falando. Eu gastava mais de $1.000 em meio para cultura de células e reagentes por mês, usando métodos parecidos com aqueles necessários para cultivar carne.
Mas a semente estava plantada. E se fosse possível cultivar carne em escala a um custo que a fizesse um substituto viável à carne animal tradicional? Carne sem o animal. Quão difícil seria?
À medida que eu acompanhava a nascente indústria de carne cultivada, eu comecei a prestar consultoria para uma startup que queria descobrir soluções para doenças neurodegenerativas que até então não tinham tratamento, como Alzheimer e Parkinson. Descobrir novas drogas é extremamente desafiador. Em muitos casos, nós não sabemos a causa raiz da doença, o que poderia ser um bom alvo terapêutico ou mesmo o melhor método de aplicação da nova droga no alvo hipotético. Normalmente existe uma caixa-preta biológica cheia de incertezas e desconhecidos no meio do caminho. Apesar disso, a sociedade despeja bilhões de dólares nessa e em muitas outras caixas todos os anos, na esperança de fazê-las menos opacas.
Mas e a carne cultivada? Décadas de ciência anterior nos deram um entendimento de como transformar células-tronco em músculo, gordura e tecidos conectivos necessários para fazer carne. Claro, pode ser que existam formas mais eficientes de fazer isso, mas a caixa preta não revelou. Aparentemente, metade da batalha já estava ganha. Era apenas o caso de aumentar a escala e diminuir os custos, e esforços para ganhar essa outra metade da batalha já tinha começado. O timing era certo.
Então eu mergulhei de cabeça. E não fui só eu.
Hoje, existem mais de 80 empresas no mundo todo buscando criar produtos de carne cultivada prontos para consumo e dezenas mais surgiram para fornecer linhas de células, meios de cultura, scaffolds, bioreatores e outros componentes necessários para dar suporte ao crescimento da indústria.
O ritmo dessa transição está acelerando. Eu e meus colegas no GFI somos contatados quase diariamente por empreendedores em estágio inicial, estudantes universitários, investidores ou representantes da indústria de alimentos buscando entender melhor os desafios da indústria de carne cultivada e como eles podem se envolver na busca por soluções (confira algumas ideias no nosso Banco de Dados de Soluções).
Em 2015, se você dissesse a biólogos trabalhando com células-tronco que consumidores estariam comendo carne cultivada aprovada pelo governo em 2021, eles dariam risada de você. Mas em seis anos, carne cultivada foi de ficção científica à realidade – dependendo para quem você pergunta (mais sobre isso depois).
No GFI, nós sonhamos com um mundo onde as proteínas alternativas de plantas, cultivo celular ou fermentação não são mais uma alternativa. E nós estamos desenhando um roteiro para chegar lá.
Um dos melhores métodos para traçar esse roteiro é através de análises técnico-econômicas (TEAs na sigla em inglês). Como dito anteriormente, TEAs são ferramentas fundamentais para exploração e priorização de áreas que justificam pesquisas adicionais, revelando os gargalos técnicos e econômicos dentro de uma determinada indústria ou processo.
Até o momento, três TEAs foram publicadas sobre a produção hipotética de carne cultivada em escala comercial (Vergeer, 20211; Humbird, 2021; and Risner, 2021) e sabemos de pelo menos mais duas próximas de serem publicadas. Nós encorajamos ativamente a realização de TEAs adicionais para trazer novas perspectivas que podem ser usadas para iluminar caminhos alternativos no mapa tecnológico ao longo do tempo.
Embora adotem abordagens diferentes e dependam de diferentes suposições e fontes de dados de entrada, as três TEAs publicados são, na verdade, bastante semelhantes no alto nível de suas descobertas. Coletivamente, elas sugerem que os custos de produção de carne cultivada são altos devido ao custo atual dos meios de cultura de células, o custo atual de biorreatores (stirred-tank) em grande escala que foram usados nos exercícios de modelagem e os custos previstos de infraestrutura adicional necessária para produzir quantidades significativas de carne cultivada.
Essas TEAs sugerem que, com base em nosso conhecimento atual, reduzir os custos do meio de cultura e do biorreator, além de melhorar a produtividade do processo são essenciais para obter faixas de custo competitivo com algumas carnes convencionais. A indústria de carne cultivada provavelmente também exigirá abordagens inovadoras tanto do lado comercial quanto do lado tecnológico, incluindo opções de financiamento flexíveis e desenvolvimento de nova tecnologia para se aventurar em faixas de custo verdadeiramente competitivas com a maioria das carnes convencionais (para considerações adicionais, incluindo a importância de produtos híbridos na realização desse objetivo, veja essa thread no Twitter).
A empreitada da carne cultivada é representada por Sam e Frodo deixando o Condado para viajar para Mordor (ou, neste caso, criar carne cultivada que compete em preço, sabor e conveniência). A indústria da carne cultivada acaba de deixar o Condado. O mapa rudimentar da Terra Média que eles estão seguindo, informado pelos TEAs atuais, mostra as maiores montanhas (meios de cultura de células e custos de biorreator), florestas (instalações de qualidade alimentar, incerteza na tecnologia de aumento de escala) e rios (regulamentos, processo de produtividade aumentado) ao longo do caminho, mas não revela os melhores caminhos ou tecnologias para nos guiar sobre, através ou em torno deles. Os detalhes completos da jornada pela Terra Média do início ao fim ainda são obscuros.
O mapa revela uma jornada intimidante – e para os pessimistas, uma jornada que pode parecer intransponível ou incerta demais. Mas os otimistas entendem que a jornada apenas começou. O mapa fica mais claro com o tempo e existe ajuda ao longo do caminho. Dadas as circunstâncias e o que está em jogo, a jornada da carne cultivada é uma que vale a pena. Como Sam e Frodo, só precisamos colocar um pé na frente do outro. Temos que ser orientados para a ação, aprender através de tentativa e erro e seguir o caminho que se mostra mais promissor. Felizmente, os otimistas têm um viés para a ação, enquanto os pessimistas têm um histórico humilde de não conseguir imaginar novos paradigmas tecnológicos.
Como cientista-chefe de carne cultivada na equipe de Ciência e Tecnologia do GFI, meu papel é transformar o obscuro mapa da Terra Média em Google Maps que mostra vários caminhos e linhas do tempo enquanto prevê o trânsito ao longo do caminho.
No GFI, começamos a dissecar esses direcionadores de custo da carne cultivada em muito mais detalhes, e o primeiro foi o meio de cultura de células porque é o principal impulsionador dos custos atuais de produção de carne cultivada – a primeira montanha a atravessar.
Em 2019, a vice-presidente de Ciência e Tecnologia do GFI, Dra. Liz Specht, publicou um relatório que destacou os geradores de custos em um modelo de meio de cultura de células. Ela explicou como os custos de meio poderiam ser reduzidos em 99% ou mais com a conversão para uma formulação de grau alimentício e fazendo suposições modestas de escala para os componentes de custo mais alto. A análise passou a servir de base para as considerações feitas em todas as TEAs publicadas até o momento que, conjuntamente, mostram que os custos de meio serão impulsionados principalmente por fatores de crescimento e, secundariamente, por aminoácidos. A indústria de carne cultivada precisará usar esses componentes de forma eficiente e produzi-los em níveis de purificação de grau alimentício ou mesmo de ração para atingir custos adequados para a produção de carne cultivada em escala comercial.
Para ajudar a entender onde a indústria está ao longo dessa trajetória, publicamos uma pesquisa geral no início deste ano, mostrando que muitas empresas de carne cultivada já reduziram drasticamente os custos de meio, um feito também alcançado independentemente pelo grupo do Dr. Paul Burridge na Northwestern University. Empresas também estão realizando experimentos com aminoácidos e outros componentes do meio de cultivo em suas versões de grau alimentício para humanos (food grade) e para animais (feed grade). Embora mais dados sejam necessários, os resultados iniciais sugerem que a abordagem é viável.
Uma próxima análise visa elucidar caminhos para a redução de custos dos fatores de crescimento. Também estamos contratando um pesquisador para ajudar a mapear nossa compreensão atual do metabolismo das células animais com o objetivo de identificar as fontes de aminoácidos mais adequadas para a produção de carne cultivada nas quantidades que a indústria exigirá conforme ela se expande.
Mas nosso foco se estende além da primeira montanha. Estamos olhando para o mapa completo, localizando os desafios ao longo de toda a cadeia de valor da carne cultivada. Para acelerar o progresso em direção ao “santo graal” da indústria – a produção de cortes inteiros de carne – destinamos todo o nosso edital de pesquisa em 2021 a essa meta. O GFI concedeu quase US$ 3 milhões a treze equipes de pesquisa para começar a trabalhar na criação de cortes inteiros de carne cultivada. Escrevemos um extenso artigo de revisão sobre tecnologias de scaffolding na revista Advanced Science (impressa), financiamos uma avaliação do ciclo de vida que mapeia os principais motores ambientais da produção, intensificamos a expansão do acesso a linhas de células e construímos bancos de dados abertos, cursos e comunidades ao longo do caminho.
As futuras análises planejadas para 2022 permitirão uma melhor compreensão dos requisitos de infraestrutura para a produção de carne cultivada em escala comercial e examinarão diferentes métodos de cultivo de células (todas as TEAs até agora examinaram apenas uma maneira de fazê-lo).
Cada uma dessas análises serve como um guia de orientação crucial para cientistas, empresas e outras partes interessadas ao longo da jornada da carne cultivada. Mas sabemos que não podemos construir a versão completa do roteiro “Google Maps” sozinhos. Precisaremos construir um ecossistema inteiro, criando um efeito cascata para transformar as centenas de mentes talentosas trabalhando em soluções em números que cheguem aos milhares – e eventualmente centenas de milhares.
A pesquisa que publicamos no início deste ano mostra que aproximadamente US$ 12 milhões em editais de pesquisa pré-competitiva foram concedidos para pesquisa de carne cultivada entre 2005 e o início de 2021. Em comparação, os gastos públicos em P&D para energia renovável chegaram a US$ 5,5 bilhões em só 2018 – uma diferença de 450 vezes.
Como resultado, a pesquisa acadêmica em carnes cultivadas está atrasada. Startups do setor levantaram mais de US$ 1 bilhão desde 2015 e várias estão caminhando em direção à comercialização em pequena escala. Embora mais da metade desse total tenha sido gerado em 2021 e ainda não tenha sido realmente implantado, os totais comparativos significam que a grande maioria da pesquisa de carne cultivada até o momento foi realizada a portas fechadas. Isso obscurece o conhecimento sobre preços e práticas, dificultando a avaliação do progresso passado, presente e futuro. Mas não estamos culpando as empresas por operar dentro das estruturas de incentivos que recebem.
Em vez disso, as equipes do GFI (incluindo nossas afiliadas na Índia, Israel, Brasil, APAC e Europa) trabalharam incansavelmente para aumentar a alocação de financiamento público para carnes cultivadas e outras proteínas alternativas. Uma parte integral deste trabalho envolveu o estabelecimento do Edital de Pesquisa do GFI em 2018. Graças a um grupo de doadores generosos, o programa concedeu mais de US$ 7 milhões em pesquisa de acesso aberto sobre carne cultivada. Esses fundos proporcionaram a pesquisadores pioneiros uma oportunidade de demonstrar o valor da pesquisa em carne cultivada, que, consequentemente, começou a abrir novas fontes de financiamento do governo necessárias para realmente construir um ecossistema de pesquisa e treinamento.
Em 2020, a National Science Foundation concedeu aos pesquisadores da UC Davis uma bolsa de US$ 3,55 milhões para a pesquisa de carnes cultivadas. Quase um ano depois, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos concedeu um financiamento de US$ 10 milhões para estabelecer o Instituto Nacional de Agricultura Celular na Universidade Tufts. Em 2020, o governo de Cingapura destinou US$ 144 milhões para seu programa de P&D Food Story, com parte desses fundos dedicados à pesquisa de carnes cultivadas. Em 2021, o Instituto de Tecnologia de Bioprocessamento A*STAR anunciou a criação do Centro de Inovação para Atividades Bancárias Sustentáveis e Produção de Carnes Cultivadas (CRISP Meats). Projetos de pesquisa de vários milhões de dólares também estão em andamento no Japão, com apoio na China também se tornando disponível. Ao longo do caminho, os pesquisadores financiados pelo edital de pesquisa do GFI também criaram empresas, formaram consórcios de pesquisa, aconselharam grupos de alunos no campus e prepararam um número crescente de cientistas para construírem carreiras na área.
Esses financiamentos públicos servem como um sinal importante de que a carne cultivada está se tornando uma disciplina de pesquisa legítima. Um ciclo de feedback positivo e fortalecedor está começando a surgir, o que levará a mais pesquisadores interdisciplinares em carne cultivada. Esses pesquisadores então enviarão mais inscrições a mais agências de financiamento, liberando mais bolsas para financiar mais pesquisas e treinar mais cientistas e engenheiros.
Pode parecer contra-intuitivo, mas uma grande parte da razão pela qual estou otimista em superar os desafios que a indústria da carne cultivada enfrenta é por causa do nascimento de seu ecossistema de pesquisa. Estamos longe de esgotar a criatividade dos pesquisadores que vão entrar no campo. Além disso, a maior parte do capital privado levantado até agora ainda não foi colocado em operação. Conforme observado acima, menos da metade do investimento privado no campo foi alocado antes de 2021, o que significa que as startups ainda estão contratando com fervor os pesquisadores para executar os planos de P&D financiados por esses investimentos.
O que acontece quando o nível atual de cientistas e engenheiros talentosos trabalhando com carne cultivada aumenta em 1000 vezes no mundo todo? Esse movimento está apenas começando.
É fácil esquecer, mas o motivo de estarmos aqui hoje é em grande parte porque os investidores otimistas começaram – e continuam – a fazer apostas há seis anos.
Essas apostas que somam mais de US$ 1 bilhão até o momento fizeram mais do que apenas financiar cerca de sessenta startups promissoras – elas iniciaram uma indústria e incentivaram a ajuda adicional a vir de várias direções. Existem agora dezenas de startups auxiliares que visam atender a indústria B2B. Reguladores globais estão estabelecendo caminhos regulatórios. Empresas multinacionais de alimentos, ingredientes e produtos químicos estão investindo e firmando parcerias. Os legisladores estão ouvindo e aprendendo, e o entusiasmo do público em geral está crescendo (por exemplo, veja esta comunidade do Reddit com mais de 60.000 entusiastas).
Mas há motivos para acreditar que ainda mais ajuda está a caminho. Embora a tecnologia sendo implementada atualmente na indústria seja herança do setor biofarmacêutico, esse legado tecnológico não é adequado para o propósito de criar produtos de carne cultivada. As células usadas para criar medicamentos e vacinas biológicas nunca foram o produto, elas estavam simplesmente servindo como plataformas de produção.
Entretanto, no campo da medicina regenerativa as células são o produto. E os esforços globais para criar uma indústria de manufatura avançada para células, tecidos e órgãos para a medicina humana estão agora bem encaminhados. Embora seus regimes de preços e escalas finais sejam diferentes, muitos dos principais desafios que a indústria da medicina regenerativa enfrenta são compartilhados com a carne cultivada. Os esforços para enfrentar desafios compartilhados não ocorrerão no vácuo. Sucessos, fracassos e tecnologias criadas para os campos de medicina regenerativa e carne cultivada serão cada vez mais compartilhados por meio de publicações, desenvolvimento de propriedade intelectual e discussões públicas nos próximos anos.
Essas indústrias estão cada vez mais aproveitando as oportunidades de colaboração e compartilhamento de conhecimento – por exemplo, o GFI entrou para o Advanced Regenerative Manufacturing Institute no início deste ano para explorar essas sinergias. Da mesma forma, melhorias contínuas em biologia sintética, bioinformática, inteligência artificial, automação e outros setores de ciências da vida podem encontrar aplicações igualmente importantes nesses campos.
A aprovação do produto de frango cultivado da Eat Just em Cingapura foi um marco monumental na jornada da carne cultivada. Mas tire o zoom e você verá que a indústria de carne cultivada representa 0,00% do mercado – sim, no cenário global, a indústria é menos do que um erro de arredondamento. E esse produto aprovado? Está sendo vendido com prejuízo por apenas dois restaurantes em um único país.
De acordo com a McKinsey, o mercado global de carnes e frutos do mar deve atingir 531 milhões de toneladas até 2030 e continuar a crescer no futuro previsível. Isso significa que milhões de toneladas de células animais cultivadas precisarão ser produzidas para capturar apenas uma fração de um por cento do mercado em crescimento, exigindo algo entre 11 a 22 vezes a capacidade volumétrica atual da indústria farmacêutica global. É uma tarefa monumental, visto que a indústria está atualmente produzindo carne cultivada na escala do quilograma.
Existem desafios reais associados à redução de custos e ao alcance das escalas necessárias para produzir quantidades significativas de carne cultivada. Existem incertezas adicionais no cenário regulatório, a probabilidade de os consumidores adotá-la e se a carne cultivada realmente substituirá o consumo de carne convencional. Para muitos, essas razões explicam porque a carne cultivada ainda permanece no reino da ficção científica, e não na realidade.
Esses fatores, juntamente com a urgência da crise climática, podem tornar mais fácil se manter pessimista e talvez pensar em gastar dinheiro e tempo em outro lugar. Mas, a longo prazo, o futuro é decidido por otimistas. E um vislumbre do futuro da indústria de carnes pode ser obtido a partir da atual transição que está ocorrendo no setor de energia.
A Lei de Amara afirma que tendemos a superestimar o efeito de uma tecnologia no curto prazo e subestimar seus efeitos no longo prazo. As tecnologias costumam passar por períodos de expectativas infladas, um vale de desilusão e, eventualmente, um progresso gradual que leva a sua difusão pela sociedade. De aviões a blockchains, essas tendências qualitativas tendem a se manter, mas quantificar a linha do tempo e a taxa de adoção de tecnologia é difícil e depende de muitas variáveis. Olhar para outros setores fornece uma visão sobre como essas variáveis influenciam previsões.
Muitas indústrias experimentaram trajetórias semelhantes, mas para ilustrar alguns paralelos importantes, a indústria solar parece apropriada. Como Max Roser, do Our World in Data, descreve, em seus primeiros dias, com preços exorbitantes, os módulos solares fotovoltaicos foram evitados, mas acabaram ganhando espaço ao atender a indústria de satélites. À medida que mais módulos fotovoltaicos eram produzidos para espaçonaves, seus custos diminuíam, permitindo o acesso em mercados muito maiores e mais convencionais na Terra. Isso criou um ciclo de feedback positivo que resultou em um declínio de 99,6% nos custos da energia solar fotovoltaica desde 1976, com declínios concomitantes nos preços da energia solar.
Os cronogramas reais dessas quedas de preços foram contra todas as previsões. Acontece que, para muitos setores, cada duplicação da capacidade de fabricação resulta em um declínio previsível nos custos, conhecido como curva de experiência. Mas essas taxas são difíceis de prever. Para a energia solar é de 20%, para a energia eólica on-shore é de 23%e para a energia eólica offshore é perto de 10%.
Então, o que pode ser dito sobre a linha do tempo e as curvas de experiência de carne cultivada? Embora alguns tenham tentado ilustrar quedas nos preços do produto final com base em números citados na mídia (por exemplo, aqui e aqui), ainda é muito cedo para fazer previsões. Os dados são muito escassos e as escalas muito pequenas para aproximar as curvas de experiência.
No entanto, como a indústria solar, a indústria de carne cultivada tem uma oportunidade crucial de ganhar fôlego para escala através dos nichos de carne premium e especiais, e como um ingrediente para melhorar os aspectos sensoriais de produtos à base de plantas. Esses mercados não são pequenos. Por exemplo, o mercado de carnes premium e especiais pode ser de aproximadamente seis milhões de toneladas anuais. Se estimarmos a capacidade volumétrica da indústria de carnes cultivadas em 2022 em aproximadamente 500 toneladas, serão necessárias treze duplicações para satisfazer a demanda por carnes premium e especiais. É aqui que os fabricantes de carne cultivada aperfeiçoarão seu ofício nos próximos anos e curvas de experiência mais confiáveis começarão a surgir.
Embora os dados mencionados anteriormente tenham apresentado reduções significativas de custo em meios de cultura de células que estão bem encaminhados, há mais incerteza para os custos dos biorreatores. E como os módulos fotovoltaicos solares há três décadas, o aumento da escala necessária da fabricação de biorreatores pode desbloquear curvas de experiência que fazem as suposições usadas nas TEAs de hoje parecerem altamente imprecisas.
Nos últimos cinco anos, a energia solar reduziu todas as formas de energia de combustível fóssil na maioria das regiões e espera-se que seus preços continuem caindo. Em 2019, a energia solar respondia por aproximadamente um por cento da energia global e dois por cento da eletricidade global.
Seria um descuido não mencionar que chegar a apenas 2% do uso global de eletricidade exigiu investimentos públicos e privados maciços, incentivos fiscais para infraestrutura, subsídios para estimular a adoção precoce e muita educação do consumidor. A mesma escala de investimento e esforço provavelmente será necessária para a carne cultivada alcançar penetração de mercado semelhante.
Atualmente, são poucos os que duvidam de que a energia solar será uma parte significativa de nosso futuro descarbonizado ou que esses investimentos não valem a pena. Mas a energia solar por si só não é uma panaceia para nossa dependência de combustíveis fósseis. Pesquisa, manufatura e políticas bem estruturadas precisam ser replicadas em fontes de energia sustentáveis. Solar, eólica, hidroelétrica, geotérmica e nuclear juntas devem compor nossa matriz energética futura, e devem fazê-lo no contexto de engenharia mais inteligente e mudanças de consumo que melhorem a eficiência energética geral.
Da mesma forma, a carne cultivada por si só não é uma panaceia para nossa dependência da produção de carne animal industrializada (e nunca foi). Carne vegetal, alimentos derivados da fermentação, carne cultivada, uma mudança abrangente em direção a dietas ricas em vegetais e outras soluções de produção e consumo de alimentos com eficiência de recursos são elementos importantes de uma estratégia holística para reduzir a pegada ambiental de nosso sistema alimentar global.
Nos últimos meses, o número de políticas governamentais locais e nacionais para eliminar os veículos com motor de combustão interna (ICE) aumentou dramaticamente. Mas seria difícil creditar essas políticas apenas à visão de políticos virtuosos e alinhados à missão. Em vez disso, o que está por trás da motivação deles é a longa e árdua estrada da Tesla. A Tesla foi pioneira na adoção de veículos elétricos e tornou-se mais valiosa do que todas as outras montadoras líderes combinadas e, ao fazer isso, forçou a mão de fabricantes de automóveis e políticos a adotar veículos elétricos.
Devemos dar crédito à lista crescente de cidades e nações liderando o caminho, mas essas políticas também parecem atrasadas. Conforme afirma Ramez Naam, é como se todo novo projeto de lei que visa habilitar tecnologias climáticas como veículos elétricos ou solares já é inadequado dada a urgência das mudanças climáticas.
Apesar disso, cada passo político na direção certa permite que essas tecnologias cresçam mais, diminuam os custos e aumentem a adoção do consumidor, o que leva a políticas mais ambiciosas e fortalece esse ciclo positivo.
No contexto do consumo de carne, alguns defendem que os esforços deveriam focar nas ações políticas populares ou em persuadir os consumidores a mudar as dietas – por que tentar buscar a carne cultivada? Mas as lições das indústrias de veículos solares e elétricos demonstram que na raiz da mudança social frequentemente está uma nova tecnologia que representa uma ameaça legítima ao mercado estabelecido e uma alternativa atraente para os consumidores. Sem essa fundação, a persuasão e os esforços na base encontrarão uma forte resistência do consumidor e uma escalada política íngreme.
É aí que entram as proteínas alternativas
Como a Tesla com veículos elétricos, empresas como Impossible Foods e Beyond Meat demonstraram que os consumidores estão dispostos a fazer uma troca (pelo menos parcialmente) da carne convencional se uma alternativa viável for apresentada. Esta demonstração catalisou uma enxurrada de novas startups usando tecnologias baseadas em plantas, fermentação e cultivo de células para criar carne sem o animal (coletivamente, a indústria de proteína alternativa).
A indústria de proteína alternativa já começou a surgir como uma oportunidade de mercado em crescimento, com níveis crescentes de demanda do consumidor. Apesar dos produtos vegetais existentes ainda serem vendidos com preço premium e a maioria dos produtos derivados de fermentação e cultivados ainda estarem em desenvolvimento, a indústria de carne estabelecida já adotou esta nova categoria lançando seus próprios produtos alternativos de carne ou investindo em empresas de proteínas alternativas.
O progresso da indústria de proteínas alternativas até agora tem sido financiado predominantemente por capital privado e trabalho árduo em um pequeno número de empresas, ao invés de apoio ao investimento público. Para cada categoria alternativa de proteína competir em preço, sabor e conveniência (o que se resume à acessibilidade e, em última análise, escala) com a carne convencional, pode ser necessário apoio público significativo na mesma medida demonstrada em outras indústrias.
Os primeiros sinais apontam para um ciclo de feedback técnico-político que está agora em movimento favorável à indústria de proteínas alternativas, semelhante ao que levou as tecnologias de veículos solares e elétricos aos seus pontos de inflexão.
Esta é uma aposta que vale a pena.
O status quo da indústria de agricultura animal convencional traz um enorme risco existencial em termos de mudança climática, degradação ambiental, risco de pandemia e resistência a antibióticos. Os custos futuros de cada uma dessas ameaças totalizarão trilhões de dólares e muitas vidas humanas e animais. Qualquer tecnologia que tenha uma chance de mitigar seriamente essas ameaças deve ser desenvolvida.
A carne cultivada é uma peça importante no conjunto de tecnologias de proteína alternativa que tem chance de fazer exatamente isso. Os desafios estão apenas começando a ser vistos com clareza e os caminhos potenciais para o sucesso estão apenas começando a ser testados. Um valor comparativamente pequeno de investimento trouxe carne cultivada para o mercado em seis anos, e a maior parte desse investimento ainda não foi feito.
Quando diminuímos o zoom e temos uma visão panorâmica da jornada alimentar global, é importante reconhecer os caminhos que já trilhamos e que nos trouxeram aqui e agora. Está claro que esses mesmos caminhos e escolhas não são mais viáveis se quisermos alimentar 10 bilhões de pessoas, alcançar uma economia de emissões neutras ou negativas e liberar terras e águas suficientes para recuperação e restauração em escala planetária. Com tudo o que está em jogo, a busca para reimaginar a agricultura moderna é uma aposta que vale a pena.
Imagem do cabeçalho cortesia da Upside Foods.